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sábado, 4 de setembro de 2010

Poemas da viagem (escritos entre fevereiro e março de 2008)

por Ana Chiara




"O corpo é tecido de laços de sangue e de carne em demasia, ele resiste a essa desfiguração do espaço familiar na anamorfose da viagem". Jean Baudrillard


I

Atravessa a língua
carta do corpo
ao coração.
Texto cândido do poeta,
arcada dentária cáries palato.

Aviso de trem
próxima parada
onde salto
pulo fora.
Estação Difícil.
Começo
outra viagem no tempo.


II

dias em alto mar
alimentos salgados
sem água potável
pilhagem sob bandeiras inimigas
depois...um istmo.


III

Beija-flor parado
tremor de asas
também viaja ,
suga o mel da alegria
por deslocamentos mínimos.


IV

acupuntura

Agulhas
Viagem no fluxo do
sangue
ao cotovelo
dores se dissolvem
mais agudas.


V

Travessão entre a partida
E a chegada
No tempo
Demora em aeroportos
Tumulto na alfândega
Passaporte vencido
Bagagem extraviada
Rodoviária cheia
Cancela fechada
Pinguela caída
Ribeirões transbor-
dantes
antes agora
do que dantes
destarte
tarde
nunca mais.


VI

Viagem curta
Saída rápida do eu,
My self, moi-même...
Ir até a esquina
Espiar o movimento
Os guris, as gurias
Pássaros e macacos
Entre os galhos
Nas árvores do Leblon
Caules, raízes no ar.
Todo movimento leve
Papéis picados
Restos
Nada se deposita no fundo.
Viajar curtamente
Entre mim e a outra
Do outro lado
Desta mesma rua.


VII

Viagem à Fazenda

Tudo isso aqui
É meu, é teu, nosso...
O gesto abarca o verde
Meus irmãos
Dois homens feitos
Dois muros
O rio lá embaixo
memória
pedras
barulhos
barriga de nossa mãe
o pai se foi discreto
um sem bigode, outro e
um outro ainda além
de nós.
Silêncio, língua presa
A viagem é sem volta.


VIII

A filha em L.A
O outro em S.P
A mãe viaja
Com Ella
Siglas
Desenhos.
Agulhadas

Tatua nas costas
Esparadrapo em rede
Tudo muito sensível
Viagens no cabresto
Rédea curta
A égua
Trota
No ar.


IX

Carte du Tendre

Mapas terrestres
Rotas caminhos
Pés calçados
Ao rés do chão
Desequilíbrio dos saltos
As quedas em si.

2000 mil léguas.
O mundo vário, em cada cidade,
um café
a cada esquina, o mendigo da vez
rumos familiares,
quase por obrigação,
a cidade sem carta de ternura.


X

Hotel da vitória,
Como se chega?
Navio no horizonte:
Um sai, outro vem...

Movimento constante:
de profundas camadas
sobem raízes quase
metafísicas


Fores tardam...
Perfazendo um tempo
na distância,
os deuses moucos.


XI

histérica,
o corpo, dor tendão:
lacraia desliza nos ombros
costas, cotovelo...
viagem aguda no limite
do insuportável.

Percurso intensivo
Ligado a fios elétricos
Ondas sonoras de baixa freqüência
Entre geléias, substâncias placentárias
A lacraia sobrevive do intenso e lento deslocar-se.

o tempo...o tempo...
passaporte para o minuto seguinte...precisa ser renovado.


XII

Caderneta de viagem:
Anoto para depois
não ler
As minúcias miosótis
A música deste lado
do sol
Luminosidades
O suor pelas costas
Teu sul
Estrangeira paisagem
Ao norte língua perdida
Retrocesso
Fruto maduro
Inexorável apodrecimento
da polpa de um pêssego.



XIII

Viagem daqui pra lá
Sem entrega
Passo atrás
Passo ao lado
Passo ao largo
Do amor mais puro
Ao mais indesejado
Volto e meia volta
nunca de todo
Ritmo pulsante
Figuro na paisagem
Chego atrasadíssima
Ou cedo demais
Nas gares dos trens.



XIV

Por terrenos baldios de São Paulo

“ nem todos os terrenos estão vazios ou abertos, outros sob cabos de alta tensão, alguns com zonas de bosque intenso, outros de futuro incerto..."

Guia de terras perdidas
Lugares vazios
da cidade,
Barra funda
Terras de ninguém
Coração baldio
Descolonizado
Consolação,
Bela Vista,
Liberdade, Aclimação...
Novos ares
Arranham o céu.

Cidade de São Paulo
Vila Prudente
Prince canta
Purple rain
clima ácido
I don ´t care where you go...
Terrenos desnivelados
Buraco vazio do Metrô
No coração da cidade
Este não conta mais.


XV

Não dorme, dorme, não dorme...
boca aberta espera
tira, põe
Dores esparsas
Faz, desfaz...
Clandestinos abarrotam porões
Com isso e mais aquilo
Roteiros vazios velados
Diário incompleto
Se alguém girasse a manivela
O navio afundava?
O país?

Ela pedia para lembrar do sonho
Pela manhã, lateja o occipital direito
Lóbulo sensível do eterno retorno
A doçura a deixava confusa
Adoçante meio amargo
Certeza nenhuma,
nunca mais se chega ao ponto
de partida.


XVI

Nada dizer a mais
palavras tímidas
na tela de longe
picos de foice, enxada
caminhos, veredas abertas

Viajam na memória...
sem atropelos.


XVII

...
Pressão psíquica em lágrimas
Performance sensível diante do espelho
depressão, euforia, diapasão sem análise....
autocomiseração, luto desfeito na próxima parada,
jogos de cena com o microfone aberto,
crises banais, para câmeras escondidas
amor, gesto ensaiado.


XVIII

Across the universe

Rola e rola…
A não ser um cão vadio
A não ser uma cadela no meio da rua
(entre balas perdidas)
Abanando rabo num tonto
gerúndio pro dono ...

Em terrenos abandonados latas de lixo
Reviradas,
Merda exposta

Nas placas caídas do poste:
Precisa-se de algum amor
(All we need)
E ódio também.
Enquanto Bob Dylan cruza palavras
Com jogos de sentido escuso
Fumar todo o último cigarro
até explodir .... as
moedas de troca.
Saber dar adeus, adios, a deus o de César...


XIX

Terreno neutro
Desce aqui
Hoje

Estação sossego
Mapa aberto sobre os joelhos
Estrangeiros na plataforma

Pensamentos em passos de pomba
Perturbam a espera
Sempre bom guardar um doce pra depois.


XX

Não se percebem mais os limites
entre um e outro
lugar de passagem...
Uso de terapêutica abrasiva...
técnicas medicinais

Sucos de luz com clorofilia exorcizam vampiros ativos, fantasmas,
sob fina camada de mel e requeijão no café da manhã...
Agora teme abraços perigosos
Nervos esgarçados atrás do coração.

Treme só de pensar...
Pessoas inevitáveis
cruzam o caminho

As cartas na Estação Repouso.
A ver...


XXI

Mundos esferas
Sangue passa por veias
Na diluição da vida cotidiana
Nada impede o sortilégio...

Trens noturnos, estação sob forte neblina.
Impossível dizer se embarco
Dependerá de minha fecunda
Imaginação do gosto exagerado do real mais erradio.
Improviso com a metade do que me foi dado ler

Assim um drama.
Palavras olham para fora
Andarilhas perdidas no caminho do sagrado.
Bolhas ardentes nas solas dos pés.


XXII

Da língua, a conversa descai para interrogações
tudo beira
não quis verificar os documentos
sofre bloqueios mentais
(no bolso um frasco para as horas irremediáveis...)
outros tantos motivos
a vida irritável lisa, sem réplica, gasto silencioso.
nada parece perfeitamente adaptável
ao desejo.


XXIIII

Travessia de través...

Histórias parecem banais vistas na seqüência
dos exorcismos dos programas de manhã...
energias desencontradas faceiam a borda do Parque Solidão
Sob reflexos ruivos, uma mulher chora à beira de si própria
Por que me olhou com olhos de bebê?


XXIV

A viagem começa
na festa de despedida.
Quando
portas se abrem...
No fim
quando
tudo termina
assunto encerrado
palavras engolidas
acenos.
Na festa de despedida,
a viagem começa
sem plano piloto
sem bússola
sem guia turístico.
A viagem começa
quando
a música termina
os instrumentos guardados
alguém acende o cigarro derradeiro.
A viagem começa
no término
quando malas
desfeitas
lembranças, quinquilharias
tudo vai no lixo.
A viagem quando
a memória apaga, deleta.
A viagem no primeiro passo
depois do último
o mundo por vir.
Quando
Passado, lacre.
Viagem começa
no selo
da carta.
No remate de males.
começa
no tiro de misericórdia.
Póstumo,
no terminado,
no tudo acabado.

Então começa a viagem.

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